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HABERMAS DISSE NÃO À RESIGNAÇÃO


Habermas foi entrevistado por Jacques le Rider, para o jornal francês Le Monde, em outubro de 1980.
A entrevista, ao lado de diversas outras, foi publicada no Brasil pela Editora Ática, em 1990, sob o título Filosofias. Ao responder a última pergunta, Habermas não se qualificou como pessimista e se recusou a fazer prognósticos sobre o "monstro técnica-ciência-administração", que põe em risco a democracia.

Na última frase, Habermas afirma: "apesar de tudo, nossa cultura me parece portadora de formas de liberdade que é preciso reativar para atingir o ideal de uma sociedade socialista. As desilusões vividas nos anos setenta tiveram o mérito de fazer tábula rasa de nossas certezas. Mas eu não cedo de modo algum à resignação.

A frase final - " Mas eu não cedo de modo algum à resignação " - talvez fique meio perdida, sem o impacto esperado. É oportuno lembrar então que "resignação" dá título ao último ensaio de Adorno, escrito em 1969, ano de sua morte, e que reflete bem sua posição filosófico-política, que coincidia com a do colega Horkheimer.

Este blog traz aqui uma contribuição para essa demarcação entre duas gerações da Escola de Frankfurt, no momento em que Habermas ainda buscava se firmar na cena acadêmica alemã, após ter sido assistente de Adorno e já sem querer e nem poder cair no desânimo a que conduzira um tipo de fundamenetação contextualista da teoria crítica.

Gravura de Dürer - detalhe


RESIGNAÇÃO

Theodor W.Adorno



Coube a nós, os velhos representantes do que foi batizado com o nome de Escola de Frankfurt, a censura de resignação. Nós teríamos realmente desenvolvimento elementos de uma teoria crítica da sociedade, mas não estaríamos prontos para tirar dali as conseqüências práticas. Não teríamos nem oferecido programas de ação, e nem mesmo apoiado ações tais que se sentissem incitadas pela teoria crítica. Eu tenho em mente a pergunta se é possível exigir de pensadores teóricos instrumentos razoavelmente delicados e de modo algum à prova de choques. A determinação que lhe cabe na sociedade de divisão do trabalho faz suspeitar que eles mesmos são por ela deformados. Todavia, são assim formados. Certamente, eles não poderiam por mera vontade própria suprimir aquilo em que se tornaram. Não gostaram de negar o momento de fraqueza subjetiva, o momento de estreitamento que se liga à teoria. Considero o mais importante o lado objetivo. A objeção, que facilmente se destaca, soa algo como: resignou aquele que duvidou da possibilidade de mudanças da sociedade em tal momento e que por isso nem participa de ações espetaculares, violentas, nem as recomenda. Ele não considera realizável algo de que tem uma vaga idéia: na verdade ele não quer realizá-lo.

A distância da práxis é suspeita para todos. Torna-se suspeito quem não agarra firme, quem não queira sujar as próprias mãos, como se não fosse a aversão contra isso legítima e só através de privilégio disfarçada. A desconfiança contra os que desconfiam da práxis atinge aqueles de que trata a velha conversa “o discurso é suficiente” do lado oposto, até no espírito do reclame, que espalha a imagem - imagem condutora, como a nomeiam - do homem ativo, seja ele dirigente econômico ou desportiva. Deve-se participar. Quem apenas pensa se retrai, é fraco, covarde, virtualmente um traidor. O clichê hostil dos intelectuais atua profundamente, sem que eles notem, para dentro do grupo daqueles oposicionistas, que por seu lado são xingados como intelectuais.

Ouve-se de ativistas que pensam a resposta: vale mudar, entre outras coisas, até mesmo o estado da separação do povo prático e o ideal prático necessita-se da práxis. Só que daí vem logo uma proibição do pensamento. Um mínimo basta: aplicar a oposição contra a opressão de modo opressivo contra aqueles que, quanto menos gostariam de glorificar o ser mesmo, não desistem, contudo, daquilo em que se tornaram. A tão conclamada unidade de teoria e prática tem uma tendência de passar por cima da predominância da prática. Muitas orientações difamam a teoria mesma enquanto uma forma de opressão; como se a prática não se relacionasse imediatamente com ela. Em Marx, a doutrina daquela unidade foi animada pela possibilidade presente da ação - já então não realizada. Hoje se delineia bem o contrário: agarra-se a ações por amor à impossibilidade de ações. Certamente já em Marx se esconde um milagre. Ele podia apresentar a décima primeira tese contra Feuerbach tão autoritariamente, porque ele não podia apresenta a sua completamente seguro. Quando jovem, ele havia exigido a “crítica crítica”, foi, contudo, uma bomba não detonada, falhou como mera tautologia. A primazia forçada da práxis paralisou irracionalmente a crítica, que Marx mesmo exercitava. Na Rússia e na ortodoxia de outros países, o maliciosos escárnio da crítica crítica se tornou um instrumento para que o existente pudesse se instituir de modo terrível. Práxis significava ainda apenas produção crescente dos meios de produção; a crítica não seria mais tolerada além do que fosse ainda não elaborado. A subordinação da teoria à práxis foi facilmente transformada para servir à renovada opressão.

A intolerância repressiva contra o pensamento, a qual não se associa imediatamente a instrução para a ação, funda-se no medo. Deve-se temer o pensamento não atrelado e a atitude que não negocia, porque sabe-se no fundo o que não se pode confessar: que o pensamento tem razão. Um mecanismo burguês antiqüíssimo, que os iluministas do século XVIII conheciam bem, funciona de novo e sem alterações: o sofrimento em uma situação negativa, desta vez na realidade bloqueada, se torna raiva daqueles que o enunciam. O pensamento, esclarecimento consciente de si, ameaça a pseudo-realidade a se desencantar naquilo em que, segundo Habermas, o ativismo se move. Sé se deixa conceder sobre isso, porque se avalia como pseudo-realidade. Enquanto proceder subjetivo, a pseudo-atividade lhe é agregada, fazer que se lança avançado e que aquece sua própria publicidade, sem se convencer até onde o fazer serve de compensação/paliativo que se eleva a fim em si mesmo. interditados/encarce-rados gostariam desesperadamente de sair. Em tais situações, não se pensa mais, ou pensa-se sob pressuposições fictícias. Na práxis absolutizada apenas se reage e, portanto, erradamente. Só o pensar poderia achar uma saída, na verdade um pensar ao qual não foi prescrito o que deve resultar, como acontece freqüentemente naquelas discussões nas quais se determina quem deve ter razão, e que por isso não traz contribuição à coisa tratada e, sim, degenera irrecusavelmente em tática. Se as portas estão trancadas, então não deve o pensamento arrombá-las, com razão. Ele teria que analisar os fundamentos e daí tirar as conseqüências. Não lhe cabe aceitar definitivamente a situação. Ela deve ser mudada, se possível, através de intuição ilimitada. O pulo da práxis não cura da resignação o pensamento, enquanto ele é pago com o saber secreto de que assim não vai.

A pseudo-atividade é geralmente a tentativa de salvar o enclave da intermediabilidade em meio a uma sociedade cada vez mais mediada e endurecida. Isso é racionalizado com a idéia de que a pequena mudança seja uma etapa no longo caminho para a mudança total. O modelo fatal da falsa atividade é o “do it yourself”, faça você mesmo: atividades que podem há muito tempo serem melhor produzidos com os meios da produção industrial, apenas para despertar a confiança no particular cativo, aleijado em sua espontaneidade, a elas viria esse modelo. O absurdo do “faça você mesmo” para produção de bens materiais e também para muitos consertos está mão. Não é com certeza, totalmente absurdo. Com a ligação dos assim chamados serviços, prestação de serviços, assumem com o tempo de acordo com a situação técnica medidas supérfluas, que um homem privado dirige, um fim quase racional. O “faça você mesmo” na política não é por si completamente um golpe. A sociedade, que se defronta impenetrável ao homem, é ele mesmo. A confiança na ação limitada de pequenos grupos lembra a espontaneidade que, sobre o todo atrofia, e sem a qual não se pode mudar. O mundo administrado tem a tendência de estrangular toda a espontaneidade, não para no fim das contas canalizá-la em pseudo-atividades. Isso não funciona pelo menos ainda separá-la e idolatrá-la como o próprio mundo administrado. Senão, o machado que nunca poupou o carpinteiro arromba a porta do lado e o comando de ataque está presente. Também as ações políticas poderiam fracassar em pseudo-atividades, em teatro. Não é por acaso que o ideal da ação imediata, mesmo a propaganda da ação, são ressuscitados, depois que as organizações outrora progressistas se integraram voluntariamente e, em todos os países da Terra desenvolvem as feições daquilo contra o que antes se dirigiam. Com isso, todavia, não caducou a crítica ao anarquismo. Sua volta é a volta de uma fantasma. A impaciência diante da teoria que nela se manifesta, não leva o pensamento para fora de si. Ao esquecê-lo, recua para antes dele.

Isso se esclarece no particular através de sua capitulação diante do período, com a qual ele se identifica. Ele se poupa de reconhecer sua impotência; o pouco se torna muito. Este ato [Akt = nu] pensar não infalível, é resignativo. Nenhuma resignação transparente reina entre os interesses do eu e o coletivo, ao qual o eu se entrega, se extradita. O eu deve se anular para com isso se tornar partícipe da escolha da graça do coletivo [Gnadewahl]. Informalmente se erige um pouco do imperativo categórico kantiano: tu deves subscrever. A sensação de um novo abrigo é paga com o sacrifício do pensar autônomo. Consolo enganoso, no contexto da ação coletiva é melhor pensado: pensar, enquanto mero instrumento de ações, se embota como toda a razão instrumental. Nesse momento não é concretamente visível nenhuma forma social mais elevada: nisso há algo que se mostra regressivo, como se estivesse próximo do alcance. Mas quem regride, segundo Freud, não atingiu o alvo do impulso [Triebzel]. Involução é objetivamente renúncia, mesmo quando ela se considera o contrário e propaga ingenuamente o princípio do prazer.

Em contrapartida, se encontra o pensador crítico sem compromisso, que nem averba/transfere sua consciência, nem se deixa aterrorizar pela ação, na verdade é aquele que não larga/parte/sai. Pensar não é a reprodução espiritual daquilo que aliás existe. Enquanto ele não irrompe mantém a possibilidade. A sabedoria tola da resignação recusa sua insaciabilidade, a relutância contra deixar-se satisfazer. Nele o momento utópico é tão mais forte quanto menos - eis aí também uma forma de recaída - se objetiva para a utopia e com isso sabota sua realização. O pensar aberto manda sair por cima de si. Sendo por seu lado um proceder, uma figura da práxis, é um parente que se diferencia enquanto alguém que obedece por amor à práxis. O pensamento é já, antes de todo conteúdo especial, a força para a oposição, que só com muito custo lhe é alienada. Um tal conceito enfático de pensar, não é certamente coberto nem por relações existentes, nem por fins a atingir, nem por nenhum batalhão. O que fora outrora pensado pode ser subjugado, esquecido, dispersado. Mas ele não deixa a desculpa de que ali algo sobreviva. Pois o pensar que se ergue diante dos olhos do pensante é a felicidade da humanidade. A tendência universal à opressão vai contra o pensamento como tal. Felicidade é o pensamento não ao determinar a infelicidade, mas ao manifestá-la. Só assim a felicidade atinge a desgraça universal. Quem não se permite atrofiar a desgraça não se resignou.




Traduzido por Bento I. Borges
(Hohnstorf, 16.03.94, versão provisória, sem revisão)


Adorno tinha razão e veio cada vez mais a tê-la, se é que isso interessar-lhe-ia, no caso da indústria cultural, de cuja banalização temos provas à mão, como esta. Ao procurar imagem para "resignação", tentamos um link com a melancolia. Muito a ver. E eis o anjo pesado e pesaroso d Dürer impresso em um copo. Silkado no caneco, souvenir de museu. Portanto, é melhor não dizermos por aí que dessa água do desânimo não beberei. Pois não há limites para a invasão dessa industriosa alienação comendo solta, mais que nunca, em tempos de chinos e de chips, quando inventam até "enterro digital" para os novos santos do capitalismo líquido e leve e sempre mentiroso.

Habermas foi convocado para a seleção
alemã na copa dos resignados de 1980
(mas não compareceu aos treinos e nem
vestiu a camisa patrocinada pela Acedia)