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quarta-feira, 28 de março de 2012

VENDO FIADO: Uma aula com urdume e tapume




 
Complementos sobre algodão e crise
(150 anos depois que Marx... puxou o fio da meada)






O livro Crítica e teoria das crises (Edipucrs, 2004) está sendo lido em uma disciplina do programa de mestrado em filosofia, na UFU, Uberlândia, MG. Uma rara oportunidade de ver o livro comentado pelo autor, que é também o professor. Um segundo grupo começou a apresentar o capítulo II, “As crises cíclicas do modo de produção capitalista”. São quase 90 páginas com muito de Marx e de Engels. Nossa intenção era evitar comentários sobre o momento atual, para evitar a dispersão e a transposição afobada. Mas, que nada. Livro é diferente de aula. E temos que encarar exemplos de nossa própria experiência de trabalhadores e de consumidores. Com isso, em vez de nos perdermos na prosa, vemos que a conversa sobre nosso momento de capitalismo tardio serve, de fato, para nos mostrar a permanência de inúmeros temas e a resistência do quadro teórico do velho Marx e de seu bom amigo Engels, bem como das causas pelas quais lutavam também no campo político.

Após a exposição da primeira metade do capítulo, o professor falou muito rapidamente sobre alguns livros e lugares pertinentes ao tema crise – inclusive o subtema da crise na indústria têxtil. Aqui vão as referências e algumas notas que deixam mais clara a conexão desse material complementar. Tentaremos seguir a mesma ordem da apresentação em sala de aula, ontem, 21 de março de 2012.

O gancho inicial foi este: já que Marx não se ocupava muito da periferia do capitalismo, na segunda metade do século XIX, cabe conferir o que acontecia, por exemplo, na América do Sul.
Uma vez, no Pasquim,  entrevistaram o Galeano e o título veio à moda da casa: as pernas...
1. As veias abertas da América Latina, livro escrito pelo uruguaio Eduardo Galeano em fins de 1970, foi um sucesso, com inúmeras edições. Referência da esquerda anti-imperialista e pedra no sapato dos entreguistas dessas repúblicas sulamericanas submetidas a ditaduras diversas. A segunda parte tem por título “O desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos que navegantes” e conta como as grandes potências destruíram a indústria que começava a se instalar nas Américas, no século XIX. Aí, a Inglaterra veio e arrasou com tudo, para criar seu próprio mercado.

No início do século XIX, Alexander Von Humboldt calculou o valor da produção manufatureira do México em tantos milhões de pesos “dos quais a maior parte correspondia a trabalhos têxteis” (p.191)

No Peru, os toscos produtos da colônia, embora nao mantivessem a qualidade da arte inca, tinha grande importância econômica.

No Chile, fiação, teares, curtumes, alambiques, jóias, etc.

No Brasil, “as oficinas têxteis e metalúrgicas , que vinham ensaiando (...) seus modestos primeiros passos foram arrasadas pelas importações estrangeiras”. (p. 192) A família real fugiu de Napoleão e veio para o Brasil, escoltada por navios ingleses. Em Portugal, a França começa a perder a guerra e o Brasil fica refém da Inglaterra...



A Bolívia era o centro têxtil mais importante do vice-reinado rio-platense: lenços, panos, toalhas, mantas, ponchos, baetas – finíssimos tecidos de linho e de algodão, chapéus de palha, vicunha, charutos de folha... Essas atividades foram logo aniquiladas.



Na Argentina, além de têxteis, produziam arreios, laços, chicotes, vinhos, etc. Aí... veio a espionagem industrial dos ingleses e sua concorrência desleal: “Os agentes comerciais de Manchester, Glasgow e Liverpool percorreram a Argentina e copiaram os modelos de ponchos (...) e artigos de couro (...) e estribos de pau para se conformarem ‘ao uso do país’, etc.” Em pouco tempo, a indústria argentina faliu e a guerra civil entre as províncias e a capital resultou nesse acordo: os fazendeiros exportavam carne e couro para a Europa e compravam de lá tudo que fosse manufaturado. A Argentina recebia da Inglaterra até as pedras das calçadas... (p. 194)



E no Brasil? Também. “A Grã-Bretanha fornece ao Brasil seus barcos a vapor e a vela, faz o calçamento e endireita as ruas, ilumina com gás as cidades, constrói as vias férreas, explora as minas, é seu banqueiro, levanta as linhas telegráficas, transporta o correio, etc.” (p.194)



2. O Visconde de Mauá, considerado o patrono dos empresários brasileiros era de fato muito corajoso e vivia de falência em falência, mas sempre metido em grandes negócios de ferrovias e mineração. Por fim, escreveu e publicou, para dar satisfação a credores, sócios e acionistas, um livro que hoje pode ser comprado por dois reais: Exposição aos credores e ao público (1878). Isso se encaixa aqui, pois quase todos os negócios dependiam do capital inglês ou levavam um golpe de um sócio (inglês). Pois os ingleses, de longa data, tanto inventaram o seguro para navios contra piratas e acidentes (vide Lloyds Bank...), mas eles mesmos forneciam os piratas para o Caribe e grande parte do mundo.

A Guerra contra o Paraguai foi uma sacanagem - lamentável até hoje.



3. De volta ao livro do Galeano, pois ali vemos defendida a famosa tese de que a Inglaterra armou uma guerra contra o promissor Paraguai e para isso jogou os vizinhos Brasil, Argentina e Uruguai contra esse país sem mar. A população masculina do Paraguai foi quase totalmente dizimada, quase um genocídio. E até hoje a população paraguaia é pequena e sua economia é fraca. O Brasil fez o papel de capataz, de pequena potência regional que assume a tarefa suja do imperialismo inglês. Estamos exagerando? Pode ser. O Exército brasileiro e a história oficial tem outra visão da Guerra do Paraguai, pois vão dizer que Solano Lopez invadiu o Mato Grosso, etc. Um pouco antes, os nossos bandeirantes haviam passado por cima do tratado de Tordesilhas, não é? E o Acre? Como foi que se tornou um território brasileiro. Well, para quem acha que Galeano usa de muita fantasia e poucas fontes “científicas” – o que não é o caso – vale ver uma obra deliberadamente mista de ficção e história, o filme Burn (Queimada), com Marlon Brando. A Inglaterra arma o povo pobre de um colônia e estimula a guerrilha, por meio de um agitador profissional. Depois, o mesmo mercenário chefia as tropas inglesas, que massacram o movimento de libertação dos cortadores da cana. Filme de Pontecorvo (1969), em país fictício... mas o enredo é apenas uma média da história da opressão imperialista. Sim, señores e señoras.
"Livro bom tá aí: um dos dez que eu não jogaria fora de meu balão caindo sobre o lago Chade." (BIB)
4. A sangria, desatada pela exploração das Américas, começou antes. Quem quiser ler uma excelente reflexão (e muito original, pelo ponto de vista do autor Todorov, que é um estudioso de literatura e semiótica) encare A conquista da América: a questão do outro. (Martins Fontes, 1988 – original: 1982) Um rio de sangue promovido pelos espanhóis, três séculos antes do capitalismo – que nos jogou nessa crise. E é importante falarmos de guerra e sangue, e não só de suor e salários baixos, pois Marx já ironizava com aspas a pregação fajuta dos economistas burgueses (liberais): os “preços” não regulam nada! O mercado (sozinho) não regula nada! Os capitalistas sempre contam com a polícia, os exércitos, os juízes, enfim, como dizia Althusser, todos os aparelhos ideológicos e repressivos do Estado.

Algodão e voto de cabresto


5. Ainda para atualizar a conversa: o que acontecia aqui, nos “apêndices bárbaros” enquanto O capital era escrito? Expressão infeliz de Marx, mas... deixa pra lá. Ora, nosso colega Prof. Dr. Cícero J. A. S. Neto estudou o fenômeno do coronelismo no nordeste do Brasil. Sua tese de sociologia eleitoral mostra como se davam as relações de poder, no sertão do Seridó, inclusive ou sobretudo em volta do plantio de algodão. Antes, o pé de algodão, o algodoeiro, era do tipo arbóreo e durava uns oito anos ou mais. Hoje, o ciclo das plantas geneticamente modificadas é de 140 dias, por exemplo. Lancei um dia essa hipótese, para debater com Cícero: a duração das crises cíclicas, à época de Marx, tinham conexão com o ciclo da planta, a parte “botânica”, agrícola, da matéria-prima, cujo preço era a explicação para a variação do lucro e para a crise mesma. Ainda em aberto esse debate. Mas, verdade é que hoje o capitalismo leve (como o caracteriza Bauman) exige plantas de curta duração, além de matérias sintéticas para nossas roupas. Com isso, as fábricas tem mais mobilidade – podem transferir os cultivos para outros lugares, por causa de clima, mao de obra, demanda, etc. E também podem levar as fábricas de carro e tecelagem para outros países, rapidinho...


No tempo da manivela e das longas jornadas de trabalho.

6. E como anda a indústria têxtil? Em Americana, São Paulo, há desemprego. Em Araraquara, um marca conhecida de meias e cuecas vai bem, está contratando e aumentando a produção. Em alguns casos, dizem que os chineses estão nos levando a fechar fábricas. Em outros casos, parece que ainda temos a melhor tecnologia. Pode ser, mas... além disso, algumas empresas apelam para outras saídas. Uma conhecida loja de roupas, tradicional no Brasil, foi recentemente denunciada por trabalho escravo (ou em condições similares às de...). Costureiras bolivianas sem documentos, escondidas em galpões da capital paulista e submetidas a jornadas de quinze horas por dia, ou seja, igualzinho o que Marx relatava em 1800 e tantos. Outra saída, como fez a Hering, é produzir roupa na China. Algumas camisetas e bermudas são feitas lá, com a qualidade daqui e o preço da mão de obra de lá.



7. Por fim e para não parecer que só gostamos de miséria. Não, o Joãosinho Trinta estava enganado: também gostamos de ver uma empresa de 130 anos, que inova e sobrevive e conta sua história com graça e orgulho, pois é também a história do trabalho. (Como disse em sala de aula, apreciei ler um livrão bem feito que conta a história do Unibanco e outro bem ilustrado, in english, sobre a saga dos tratores Catterpillar). Pois, então: o museu da Hering merece uma visita – ao vivo ou virtual. Além das cervejas boas, do Museu da Cerveja na terra da Oktoberfest, de um cemitério de gatos, etc., Blumenau tem esse belo Museu. Lá, o visitante pode ter a experiência de girar a manivela de um tear francês de 120 anos e... produzir malha, com algodão cru. No final, pode-se levar um souvenir incrível: um pedaço do tecido. Que máquina perfeita, com 1450 agulhas, reguladinha e ainda funcionando! Quanto tempo vão durar nossos computadores e pendrives? Ou seja, a experiência – corporal mesmo, muscular – de girar um tear do tipo que Marx deve ter visto.


E por falar em tempo, o slogan da firma é "desde sempre"
(que vale para o esforço do trabalho e o risco da crise)

8. E hoje Marx talvez gostasse de ver as novas máquinas, não muito diferentes daquele tear: um motor em lugar de manivela, mais novelos em vez de apenas quatro e sensores luminosos para o fio que acaba ou estoura. No mais, o operário ainda ganha por quilo de malha... e o chefe fica no pé, de olho na qualidade, etc. Mas há muitas novidades, certamente, ao lado do velho lucro, que move toda a cadeia de produção e consumo.



9. Por fim, dois ou três temas, bons para ensaios (valendo pontinhos no final do semestre, ainda a combinar).


Se fosse "from time to time" seria "de vez em quando"
(valendo para os ciclos de crise e de recuperação)



9.1 A noção de tecnologia não pode restringir-se a máquinas, computadores e química. A Embrapa desenvolve no nordeste do Brasil o cultivo de diversas variedades de algodão naturalmente coloridos. São cores suaves, umas cinco ou seis tonalidades, que fazem sucesso em pequenas produções de malha, sobretudo pra turistas. Aqui no Brasil central, já conhecíamos o algodão ganga. Uma beleza, que não leva corantes, não polui os rios, e gera emprego e renda na região. O Estado favorece não só o grande capital, o exportador, pois precisa gerar renda também para pequenos produtores, que ainda colhem algodão manualmente. Assim, a Embrapa, em suas diversas unidades é um patrimônio nacional, orgulho de nossa ciência. Essa estatal cuida, por exemplo, de reunir e proteger as variedades originais de milho e feijão, pois não podemos confiar nas multis e seus híbridos e transgênicos. E devemos apoiar, sim, a Embrapa, a agricultura familiar, a reforma agrária. E, para refrescar a memória: Collor queria acabar com a Embrapa, privatizá-la.



9.2 Será que as modelos podem ser vistas como empregadas da indústria têxtil? (Do mesmo que podemos ver pilotos de carro como empregados da indústria automobilística?) Fora o glamour e a fama de 3 ou 4 tops, milhares de moças e adolescentes esbeltas conseguem fazer sua curta carreira de promotoras de vendas de roupas (e milhões ficam fora dos concursos). Além disso, passam fome e sofrem com treinamentos e seleções, o que não difere muito – na balança - das operárias das tecelagem do século XIX, com jornadas de 15 horas, que também as deixavam magérrimas. E pior: muitas ficavam de fora, desempregadas. E outras moças, que não chegam a desfilar, idem.



9.3 Exemplo de pequeno avanço tecnológico e desemprego (com eventual queda no preço da fibra de cotton): por volta de 1975 a 80, plantavam algodão na região de Tupaciguara. Muitas mulheres e crianças faziam um bico lá, assim que as plantinhas atingiam um palmo. Era necessário “ralear” o algodão, desbastá-lo, para deixar menos plantas na linha. Até professoras, nas férias, ganhavam uns trocados na lavoura (e uma dor nas cadeiras!) Mas eis que alguém, em um laboratório, inventou de mergulhar as sementes de algodão em um ácido e... a semente ficou lisa, sem aquele restinho de fibra. Com isso, as plantadeiras passaram a ser reguladas para semear só a quantidade certa e distanciada de plantas. Economizaram caroços e mão de obra, pois não havia mais desbaste. E depois, as grandes lavouras dispensaram os panhadores de algodão também.

9.4 Até onde é possível “agregar valor” com alterações na cadeia produtiva? Em Goiás, nos anos 70, as lavouras de algodão envenenaram os céus e as águas. Nem urubu havia mais em Santa Helena, pois caía morto, agrotóxico... Folga para outros cultivos. E recentemente, em outra cidade, um plantador de algodão também instalou máquinas para fiação ao lado da lavoura. Será que poderia lucrar mais tecendo ali mesmo, do lado, toalhas e camisas? E, depois, poderia fazer crescer a população da cidade para vender ali mesmo sua produção? E aí abrir sem próprio banco...? Esse tipo de fantasia totalizante já teve sua versão seringueira: trabalho escravo + aluguel + mercearia... (Mas é claro que o processamento do algodão ao lado da lavoura é bastante racional, pois há subprodutos importantes como a torta feita das sementes – e com isso economiza-se em transporte, etc.) Enfim, há mais medidas novas para fugir da crise, com as quais Marx nem sonharia (mas sua teoria dava conta dessa verdade sobre o progresso técnico).



9.5 Qual é a relação entre indústria e artesanato? Como surgiram e como sobrevivem? Adolescentes gostam de amarrar uma camiseta branca e tingi-la em casa, à moda hippie. Mas de onde vem a tinta? E hoje alguns artesãos pedem por celular as sementes perfuradas de açaí para fazer pulseirinhas. Vem de sedex... E o que é customizar roupas, tunar carros? Não demora muito e a indústria interpreta as tentativas de “personalizar” os produtos em série. A mesma Hering já vende camisetas pintadas com spray, o que antes era um showzinho na praia, uma performance. Qual a tendência do design mundial? Que referência da cultura regional ainda permanece nos produtos da indústria globalizada (inclusive da “indústria cultural”)? Uberlândia dispõe de um Centro de Fiação e Tecelagem, onde tecedeiras trabalham e vendem suas peças: cobertas, caminhos, jogos de mesa e outras belezas urdidas ali, para turistas e lugareños. Quem não conhece? Na Avenida Ipê, chegando no Patrimônio, perto da OAB, onde era um matadouro, etc. Lembrem-se que essa foi uma grande básica, em tom de deboche: Engels disse que Dühring não sabia nada da grande indústria (e por isso não conseguia uma crítica adequada do capitalismo).



Prof. Bento Itamar Borges – 27.03.2012

Por fim, o endereço do museu da Hering e um vídeo sobre a criação dele:

http://ciahering.com.br/site/pt-br/Empresa/Museu+Hering

http://www.youtube.com/watch?v=u7XT4x6pRxo


Beija-flor prefere algodão sem química e sem veneno
para forrar seu ninho

(preservem os bichinhos)