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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

HERMÊ NA QUINTA 2

DOIS JORGES:

O PROLIXO ALEMÃO e O miniCONTISTA





Na aula anterior, a segunda de dezoito, uma aluna estranhou quando ouviu que o autor alemão Gadamer escreveu um livro extenso e de leitura agradável. Agora trago para a 3ª aula dois catataus: o referido livro Verdade y método mais o raro livro de filosofia brasileira, Ciência e existência. Este, escrito por Álvaro Vieira Pinto, tem 537 páginas e foi o resultado de um ano de curso oferecido no Chile, em 1967, antes do golpe militar. Gadamer já tinha uns sessenta de idade quando lançou em 1960 seu influente livro, cujo subtítulo é “fundamentos de uma hermenêutica filosófica”. Estamos comparando aqui – assim como ocorreu na sala de aula do cinco-ó – apenas a extensão e o processo construtivo dos dois livros, que são também dois objetos mais ou menos diferentes.

O livro de Gadamer é resultado de longa maturação e diálogo com grande parte da história da filosofia. Os editores prepararam lista de autores citados, de temas e de obras. No caso de Álvaro Vieira, um livro de exceção: não há lista de nomes, nem de temas e nem qualquer bibliografia. Nem uma notinha de rodapé para agradar o professor de MTP. A única ajuda vem nos sumários de cada um dos vinte e dois capítulos, que certamente foram, antes, vinte e duas aulas. Talvez as aulas tenham sido gravadas e transcritas, o que nos ajuda a explicar o caráter prolixo e expositivo, em seqüência que não pode ser quebrada ou invertida; é um curso, um percurso. É preciso entender o que AVP chama de conhecimento (um conceito que inclui a ameba: a ameba conhece), para em seguida acatar sua concepção de pesquisa. E assim por diante, até beirar a revolução. Essa falta de fontes e copyrights apóia-se certamente também em motivos políticos, à época da formação de uma consciência anti-colonialista, etc.

O livro de Gadamer não é um manual, desse naipe. O leitor pode, sem pré-requisitos, selecionar do índice remissivo um tema, como, por exemplo, “aventura” e ler apenas as três páginas, embora seja melhor ler toda a seção “vivência” – que é conceito-chave da hermenêutica, desde Dilthey.

Ora, ainda não foi a hora de levar o terceiro catatau da hermenêutica. E não me refiro ainda à Bíblia Sagrada, mas, antes, ao livro de Paul Ricouer, O conflito das interpretações, com suas 600 e tantas páginas. Trata-se, no caso, de uma coletânea – que inclui, por exemplo, longa resenha de um livro do teólogo Bultmann – e para esse gênero de publicação a noção de prolixidade não se aplica com a mesma simetria.

¿Então, que tal uma guinada para a outra extremidade? Levei para a sala de aula o livro de minicontos do outro Jorge, o Abrantes: Contos instantâneos. Livro atípico e digno de uma curtíssima resenha, em breve, em outro blog. O livro tem quinze páginas de sumário! São uns 300 contos, que ocupam... 120 páginas: cada conto tem duas ou três linhas apenas. Segredo que interessa a nossa mui cara hermenêutica, cujas caldeiras vamos atiçando: também são relevantes, para a compreensão e a curtição de cada miniconto os seguintes elementos textuais e gráficos: o título, o tipo de letra (fantasias pictóricas e gráficas, inclusive), a dedicatória (e o perfil do homenageado) e os eventuais contextos de trilogias e reticências. Ou seja, o sentido vem de um jogo que extrapola os minicontos, sempre montados em diálogos, que nos fazem (pré)supor narrativas e contextos. Enfim, Jorge reclama uma ampla erudição e exibe um cuidadoso trabalho de “redução” – algo parecido com a edição de filmes de trinta segundos. O que é essencial? Qual é o efeito, o eco? Que afetos desperta?

Aí, nessa altura da aula com cuspe e giz, surgiu a conversa sobre os sinônimos e antônimos de “prolixo”. Ao ouvir termos como “conciso” e “sucinto”, foi inevitável encarar os pares análise e síntese, objetivo e “enche-lingüiça”, etc. Deveríamos opor “subjetivo” à noção de “objetivo”? Ora, quem fala do objeto (e não de si mesmo) também pode enrolar e demorar. O sachlich, em alemão, é o “coisal”, o científico (oposto às belas-letras), mas isso não é igual a objektiv.

Mais simples, por entonces, foi lembrar as lições de Folscheid e Wunenburger, no manual que conhecemos bem, Metodologia filosófica: não se deve resumir (ou contrair) obras literárias, nem obras difíceis e densas, como a KRV, Crítica da razão pura, de Kant. Sobra pouco para o exercício de resumir a dez por cento: debates jornalísticos, de opinião – o campo da embromação.

Devemos distinguir, como na anedota sobre o canivete, a propósito do nada, a composição e a subtração. Há fragmentos por acidente, quase tudo que resta dos pré-socráticos. E há escritos deliberadamente truncados, como alguma coisa de Derrida que traduzi e não consegui publicar. E não estamos aqui para ensinar ninguém a escrever desse ou daquele jeito. Vamos, sobretudo, ler e interpretar, adivinhar.

Mas aqui, a partir da questão da aluna, deitamos conversa (repetindo parte da aula) para mostrar que um texto prolixo pode ser agradável e relevante. E os dois exemplos valem: Gadamer e A.V. Pinto.

Já o contra-exemplo, no campo da ficção, reforça teses quase-intuitivas da hermenêutica, quanto ao caráter de sugestão e de mosaico de referências, além da pré-disposição e do contexto. O pouco que sei sobre Jorge Abrantes (que entende de cinema, tem mestrado em filosofia, na UFU, e é dentista) fornece uma boa dose do (bom) preconceito que Gadamer recebe de bom grado em sua hermé(neu)tica. [E isso aqui já uma amostra da homenagem concisa que espero fazer ao autor dos Contos instantâneos. Dica: neu é nova, em alemão...]

 
Não combina com blog publicar aqui um parágrafo de três páginas do livro do A. V. Pinto. E é fácil lerem por aí passagens de Gadamer. Vamos, então encerrar este post, com um miniconto do Jorge Abrantes (sem a fonte original do título) e uma referência. Aí, ficam os alunos e demais leitores liberados para voltar ao facebook. Time is money e vamos perdê-lo.

SEREIAS

Para Homero e Odisseu

-- Há perigo em todo canto.
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